Há, no trabalho de Teresa Lobo, pelo menos dois planos de concretização que é necessário distinguir como prévios ao seu próprio processo criativo e, portanto, à génese do desenho no processo da sua obra.
Um primeiro, que se compreende desde logo como estruturante de toda a sua poética, e que consiste no uso sistemático de um certo aspecto do desenho, que é o traço, que aliás dá, e não por acaso, o titulo a esta exposição. E um segundo plano, mais complexo, mais subtil, ou por assim dizer com um caráter mais interior e profundo, que advém da capacidade que a artista tem de ir desenvolvendo, a partir daquela primeira estrutura que o traço por si mesmo define, uma espécie de improviso (à maneira do que ocorre com o jazz), em que o desenho renasce como invenção. Quero com isto referir-me a uma situação plástica em que o desenho serve não tanto para reproduzir formas existentes, de que seria representação e notação mas, e pelo contrario, em que o desenhar se torna acto que se desprende de qualquer vinculo ao real para se elaborar como puro campo de experimentação.
Será pois em torno da compreensão destes dois eixos em torno dos quais se desenvolve este trabalho, e no cruzamento de ambos, que deveremos procurar o seu sentido e a sua explicitação. Ocorre pois perguntar: em que é que o traço, nele, se constitui como um aspecto essencial do acto de desenhar?
Na verdade, se nos é fácil perceber que todo o desenho incorpora o traço, como função e como componente, também deveremos entender que o acto que distingue o desenho não acaba no traço, ou seja, que nem todo o traço é desenho. O que é, então, o traço? Este consiste, creio, na afirmação de tudo quanto, no próprio interior do acto de desenhar, é da ordem do impulso, do gesto primeiro, isto é, na explicitação de tudo o que, no desenho, é registo primeiro da visibilidade do próprio desenhar.
Uma máquina de registar sismos, por exemplo, vai deixando traços sobre o papel, do mesmo modo que o faz um eletrocardiograma, ou um gráfico que registe a evolução de uma qualquer ocorrência. Todavia estes aspectos, que igualmente se apoiam no traço, não são ainda desenho, justamente porque não apenas não resultam de uma intencionalidade, como também porque não têm o seu significado separado de um simples sentido de registo que só é legível no interior de um dado sistema de correspondências.
Por outro lado, quando a criança quer começar a desenhar, antes mesmo de ter adquirido qualquer competência nesse campo, risca aleatoriamente, limitando ao traço (ao registo do seu impulso) a capacidade significante do seu acto, e projeta depois no resultado obtido aquilo que quis significar, mesmo se tal não é ainda visível para os demais: diante de um conjunto de riscos a criança afirma sem pudor que aquilo é a sua mãe, um jardim, um cão ou ma casa, precisamente porque identifica a significação com o impulso para a representar.
O traço surge, pois, e como vemos, como forma primeira. Aquela com que o impulso inscreve o acto de desenhar, o acto fundador do desenho, mas não ainda como
aquilo que possui o sentido final deste. Revela-se, portanto, como intrínseco ao acto de desenhar, mas não chega a esgotá-lo no seu campo de significações.
O traço é, também, registo de outras ocorrências. Por exemplo, o tempo deixa marcas num rosto – as rugas – que também são traços que como que o desenham. O clima deixa igualmente marcas no território, como sejam os sulcos das secas nos terrenos, que são do mesmo modo traços. A passagem de um qualquer grupo, um exército por exemplo, por um dado lugar, deixando marcas como o são por exemplo as pegadas, assinalam algo que é também da ordem do traço. Mas, e por tudo isso, o desenho é muito mais do que o traço. Partindo dele, o desenho é já acto comunicante pleno. Pressupõe um domínio do gesto que traça, ao mesmo tempo, uma capacidade de lhe dar sentido e propósito, uma intencionalidade e uma relação com um campo de significações mais ou menos alargado e universal.
Ora o modo como Teresa Gonçalves Lobo parte do traço (seguindo o traço significa, ao mesmo tempo, seguir a pista e seguir o que se inscreve no impulso primeiro do acto de desenhar) procura recuperar, no seu processo, um modo de libertar no campo de uma gestualidade pura esse impulso de que parte todo o desenho. Ou seja, a artista como que vai ao encontro desse registo primeiro que o traço encerra, e que consiste na captação de uma pura energia.
Naturalmente que, tendo a mão e o olhar educados pela sua prática artística, também o traço no processo do seu desenhar está já pregnante de uma pressuposição do desenho. É assim que, mesmo nas mais simples formas desse desenhar, nos parece visualizar de repente, no plano das sugestões possíveis, o erguer de uma labareda, a memória de uma raiz, ou de uma corda, a sugestão de uma planta, de um molho de vimes, a impressão das linhas de uma fraga, o sombrio desenhar de uma cortina, o recorte longínquo de uma cidade. Ou simplesmente vários planos que esboçam uma qualquer geometria.
Mas tal é a potencia do desenho que permanece próximo do traço: um poder de sugestão e de figuração que se dissolve e desfaz assim a percepção procura fixar nele uma significação precisa. Permanecer no traço significa pois permanecer num plano puramente significante, que se furta a corresponder a uma única significação, potenciando precisamente a sua capacidade de se abrir a significações várias. Consiste, portanto, em conservar a energia do impulso, atrasando para tal a significação e a representação. Nesse sentido assemelha-se ao que seria um canto que apenas balbuciasse, que hesitasse em proferir palavras distintas e distintivas para permanecer na pura modulação da voz, preso da sua potência de sugestão e de experimentação.Tal proximidade do impulso e da potência gera, pela permanência na sua própria gestualidade intrínseca, uma força de abstração e de pureza que afastando (ou mesmo esconjurando) a representação, abre incessantemente para um domínio em que o desenho permanece alheio a qualquer sentido de disciplina, contrariando em si aquilo que nele é o seu próprio sentido (disegno, desígnio).
Há, porém, um segundo plano, e como para trás afirmei, no trabalho de Teresa Gonçalves Lobo. Aquele que passa pelo desenvolvimento no interior do seu trabalho, a partir dessa estrutura primeira que o traço define, uma espécie de improviso que a artista controla, e que desvia o traço da sua insignificância sem o fazer perder a sua potencia. Ele ocorre sempre que a artista, partindo da simples evidência do traço, o envolve depois de um conjunto de pequenas alterações que o dissolvem enquanto traço puro e que, sugerindo os movimentos controlados do desenho, ainda mais o abstratizam, uma vez que na verdade apenas acentuam o seu poder de sugestão.
Então, pequenas linhas partem do traço inicial e parecem acrescentá-lo de volumes, de significações e de representações quando, na verdade, são apenas falsas pistas, modos de permanecer numa dimensão abstracta, no plano de uma não-significação que se furta a qualquer espécie de representação.
Nesse sentido, e embora a sua seja uma deriva abstracta, ela consiste numa reapropriação da potência de sugestão do desenho, muito à maneira das explorações dos surrealistas, e em particular de Max Ernst com as suas extraordinárias frottages. Que se destina de certo modo a inscrever na aridez do traço o que é da ordem de uma quase organicidade.
Estes outros desenhos da artista, então, prolongam o não-sentido dos anteriores, mas abrindo para um espaço ainda mais variado e rico de sugestões que prolongam interminavelmente o que, nos outros, era da ordem das evocações.
Ao sugerirem sombras, declives, recortes, volumes, eles como que dramatizam a potencia primeira do desenho, convertendo a sua dimensão abstrata numa espécie de trompe l’oeil.
Um pouco como os esplêndidos desenhos de Manuel Baptista, que nem sei se Teresa Lobo conhece, e que decerto não a influenciaram, eles agora aproximam-se de cartografias, de mapas, de cortes estratigráficos mas de lugares que não há. Lugares da pura imaginação que só o desenho pode alcançar, com o seu poder de sugestão e de fantasia.
Arabescos que evoluem segundo uma espécie de disciplina secreta, eles reinventam, de cada vez, o sentido primeiro do desenho: representar, designar. Mas que, ao mesmo tempo que assim procedem, geram um espaço paradoxal que os afasta de todo o propósito representativo. E nesse percurso em direção à abstração, vão desenhando topografias de espaços que ainda não há, e que se configuram como puros espaços poéticos.
Abril 2011
Texto do Catálogo da exposição “Seguindo o traço”, Fundação D. Luís I, Centro Cultural de Cascais, 2011