“Calligraphie auprès de laquelle, plus simplement, on se tient comme auprès d”un arbre, d’une roche, d’une source.”
Henri Michaux  Idéogrammes en Chine.

“Cintilam na noite do ser, através da claridade da consciência que não a dissipa(S) ”
María Zambrano  “Signos, Sementes”  Clareiras do Bosque.

Desde os anos 40 com o impulso da abstracção lírica, sígnica e gestual de Degottex, Hartung, Mathieu, Michaux, Schneider, Soulages, Tàpies, Wols ou Dotremont (um dos criadores do grupo COBRA em 1948) e da grande tentação que levou o Ocidente a seguir os ritmos e os grafismos da arte oriental, que a arte contemporânea achou um modo que se prolonga até aos nossos dias de celebrar as núpcias da poesia e da pintura, num constante cintilar de prodígios de que o artista francês Henri Michaux permanece um expoente fundamental.
A poesia visual que em Portugal como movimento surgiu nos anos 60, deu esplêndidos frutos na obra da poeta pintora e ensaísta Ana Hatherly, um vulto de grandeza europeia, que no Barroco, período em que se especializou, descobriu idêntico élan de fusão da escrita e da imagem. Foi aliás Ana Hatrherly em a reinvenção da leitura, entre nós pioneiro ensaio, quem realçou “o carácter místico da escrita – para Platão ela era a geometria do espírito”, “assumido com grande rigor no Oriente, particularmente na China e no Japão, onde o poeta-pintor-calígrafo é uma unidade cultural paradigmática.” (1)

Michaux por sua vez prestou homenagem na sua poesia e no livro Idéogrammes en Chine (2) justamente à figura do artista calígrafo capaz de ressuscitar esta vocação primeira da escrita para o milagre e a aparição. Uma escrita alucinante, de ruptura, de transgressão, de maravilhosas explosões e vibrantes nascimentos que foi a sua também e que neste texto define em sintonia com os sinais de onde ela parece ter nascido.
“Traços em todas as direcções. Em todos os sentidos das vírgulas, dos anéis, dos parênteses, dos acentos, diríamos, a toda a altura, a todo o nível; desconcertantes arbustos de acentos. Riscos, quebras, inícios, parecendo subitamente interrompidos. Sem corpo, sem formas, sem figuras, sem contornos, sem simetria, sem um centro, sem lembrar nada conhecido. Sem regra aparente de simplificação, de unificação, de generalização. Nem sóbrios, nem depurados, nem despojados. Cada um como que fragmentado (S).”
Caracteres antigos da escrita chinesa, aparentemente absurdos, reinterpretados pelos letrados ressuscitaram na sua intenção primeira, revivendo, como descreve Michaux, ele também amante da escrita chinesa. Todo
um mundo emerge então: luas, .corações, portas, gestos humanos, manhãs, água da chuva, ameaças e seduções, um mundo “cheio de tudo o que existe no universo”. A nova escrita possuindo um poder pela sua visitação das origens, de renovar os objectos, de reencantar o mundo.
Existe então, ainda segundo Michaux, uma oportunidade desta escrita se aproximar das coisas. Estas deslizam suavemente para dentro dos signos, já não é a escrita a imitar a vida, mas o contrário. Poder de transfiguração da caligrafia, capaz de “provocar o traço inspirado”. As novas caligrafias, “arte do tempo”, são leves e velozes, fluidas como a água, captam os movimentos íntimos da natureza e dos seres. Transportam o significado oculto nos seus traços, nos seus impulsos, dão lugar à poesia nos seus espaços, no convite ao sentido da vista, à multiplicidade, à comunhão e à surpresa.
O processo que Henri Michaux descreve poderia acompanhar as sensíveis, luminosas e obscuras escritas de Teresa Gonçalves Lobo que hoje temos o gosto e a honra de apresentar. A vinda à escrita de um autor é sempre uma celebração da alegria e tratando-se de uma mulher, é mais do que uma celebração uma acto de perfeito nascimento com o sentido genesíaco da criação.
A pintura escrita decorrente do surto de informalismo de raiz oriental que referimos e dos movimentos de vanguarda como COBRA ou entre nós o KWY (1958 a 1968) iria florescer em percursos tão diversos como os de Escada, Eurico Gonçalves, Manuel Baptista, João Vieira, Emerenciano ou António Sena e na via única inaugurada com Ana Hatherly, nos seus Mapas da Imaginação e da Memória, a sua criação de alfabetos de pura visualidade. O que não pode ser dito.
“Escrevo para dizer o que não pode ser dito.”
Ana Hatherly – A Idade da Escrita

“Je n’ écris pas. La vie fait texte à partir de mon corps. Je suis déjà du texte.”
Helene Cixous  La Venue à l¹Écriture.

Teresa Lobo dá continuidade a esta linha da arte do século XX e à nobre tradição da cultura portuguesa que desde o Barroco, estudado precisamente por Ana Hatherly, une pensamento e expressão plástica. Aos enigmas que brilharam nos jogos conceptuais e visuais do Barroco, ela contrapõe a modernidade e o fulgor da essencial gestualidade, uma nova forma de se relacionar com o real ao modo do “calígrafo” que Michaux poeticamente descreve e de cuja arte ela se aproxima, inconscientemente, mais do que de qualquer tendência conhecida e reconhecida.
Na sua anterior exposição que visitámos sentimo-la a ensaiar os passos de um alfabeto de signos volúveis, letras diluídas, sinais seduzidos pelo invisível tanto como pela beleza e o mistério do visível, tentando atingir e por vezes atingindo mesmo aquele ponto subtil onde visível e invisível não se distinguem mais, realidade inconclusa de uma majestosa e sensorial visualidade, vulnerabilidade, que não se basta a si mesma, mas parece vibrar no esplendor do milagre e da assombração.
A tinta possuída de uma alma, a explosão dos gestos em cometas de uma noite que é a pura respiração do silêncio. Pontes, firmamentos, oceanos, correntes, rastos de uma emoção que deseja habitar e ser habitada. Rasgões, feridas, sulcos, no tecido das aparências, paisagens de uma doçura por descobrir, mapas de uma evasão que é voo contido e explosão anunciada. Paisagens escritas de uma alma que inventa com a sua língua, a língua do mundo. Concentração e expansão, simplicidade e Caos, vertical e horizontal, rotação e queda, grandes movimentos e ritmos, mas também o balbuciar hesitante de incontidas delícias, pequenos temores, e tremores, tudo o que não acha expressão na língua, escrita, consentida.

 

Escrita outra que Hélène Cixous inventa ela também: ³(S) não escrevo. A vida faz texto a partir do meu corpo. Eu já sou texto, A História, o amor, a violência, o tempo, o trabalho, o desejo inscrevem-no no meu corpo, vou onde se dá a escutar a “escrita fundamental”, a língua corpo na qual se traduzem todas as línguas das coisas, os actos e os seres, no meu próprio seio, o conjunto do real trabalhado na minha carne, captado pelos meus nervos, pelos meus sentidos, pelo labor de todas as minhas células, projectado, analisado, recomposto num livro.”(3) Ou no conjunto destes signos em mutação. Também a filósofa poeta espanhola Maria Zambrano evoca estas “palavras” outras, signos, sementes: “elas saltam de modo diáfano, promessa de uma ordem sem sintaxe, de uma unidade sem síntese, abolindo todo o relacionar, rompendo por vezes a concatenação. Suspensas, construtoras de plenitude, ainda que seja num suspiro.” (4)

“Vogais ao sol”onde parece ecoar o grito do poeta de Estou Vivo e Escrevo Sol, António Ramos Rosa. Uma escrita que se essencializa, se transfigura, se transmuta na presente exposição afirmando verdadeiramente o talento e a vocação de uma jovem e intensa caligrafia cujo surgimento Michaux teria saudado. Linhas frágeis numa progressão determinada e misteriosa, emergindo da noite do inconsciente, sem a dissipar, como escreveu no texto sublime que citámos em epígrafe, María Zambrano, e próximas da luz e da contemplação.
Traçados de uma ausência contaminada pelo ímpeto tumultuoso da vida, fronteiras entre o silêncio e o dito, o inconsciente e a consciência, margens, franjas de leve e voluptuosa nudez do visível, os seus murmúrios,
orlas de uma floresta de sombras e de sonhos. Sombras de percursos, ausência luminosa de uma Vida que se anuncia e anseia habitar a escrita, A escrita é interpelada por uma realidade nascente e recolhe os traços de ta visitação, vibração. Aéreos, escuros, fios de água, de tinta e de silêncio, oscilantes e tácteis na sua nudez.

O Jardim Exaltado
“Beauté des palpitations au jardin des transformations (S) le désir infini, pulsation qui ne faiblissait pas.”
Henri Michaux  Le Jardin Exalté.

“O corpo é talvez uma árvore libertada”
“E se volúveis são as sílabas é a sua sede que fulgura”
António Ramos Rosa  As Palavras.

Invasores e tímidos sinais, jardins suspensos de exaltação e melancolia audaz e terna. Traços no silêncio, irruptivos e dóceis convites à brancura, no seu bailado de finas sombras. Arbustos de sonhos, ninhos, centro de emoções dispersas, rostos de uma profundidade que encerra a doçura e devolve a luz a quem a ama.

Linhas virgens de uma floresta de sons inaudíveis. A palavra a vir, nocturna, crepitando nas suas chamas, erectas sílabas petrificadas pelo terror e a paixão. Ardendo, inaugurando os seus mil braços sóis, a sua partitura de trevas, as suas teias de milagres contidos, assim contados.
Árvore livre. União e dispersão. Cosmos e Caos. Vermelho e preto, delgadas e secretas assumpções de uma beleza sem rosto, sede de claridade, véspera de uma existência que emerge com a fluidez da água das fontes, o ímpeto das raízes e o assombroso calor do centro da terra. Domínio de uma escrita que nos revela o vazio e dele extrai a matéria prima de um alfabeto de sinais vivos que a Vida deseja inaugurar.

Notas:
1. Hatherly, Ana  A reinvenção da leitura, Editorial Futura, Lisboa, 1975,
2. Micahux, Henri – Idéogrammes en Chine  Édition Fata Morgana, Paris, 1975. Tradução de Maria João Fernandes.
3. Cixoux, Hélène  “La venue à l¹écriture”, La venue à l¹écriture de v/os autores: Cixous, Hélène, Gagnon, Madeleine e Leclerc, Annie. 10/18, Union Générale d¹Éditions, Paris, 1977, p. 57. Tradução de Maria João Fernandes.
4. Zambrano, María. Tradução e apresentação de José Bento. “Antes de se proferirem as palavras”, Clareiras do Bosque, Relógio d¹Água, Editores,Lisboa, 1995, p. 87.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Lisboa, Janeiro de 2008

 

Texto de catálogo da exposição “Percursos ,  Centro das Artes Casa das Mudas, Calheta, Madeira, 2008