Desenhar é dar uma mão ao mundo para que ele se meça e se mereça, se corrija e se acrescente. A linha que dessa mão nasce marca-o, aperta-o, solta-o, concentra-o, expande-o, dilata-o, dispersa-o, despista-o, dispara-o, multiplica-o. Às vezes, talvez nas melhores vezes, simplifica-o, purifica-o, sublima-o, revela-o. Sem desenho, o mundo seria desfigurado pela ausência de uma alternativa a ele.
Diz Proust, com aquela razão que nele era clara e quente como um súbito amanhecer de verão sobre o mar ainda rouco da noite: “Sópela arte podemos sair de nós mesmos, saber o que outra pessoa vê deste universo que não é o mesmo que o nosso, e cujas paisagens teriam permanecido para nós tão desconhecidas como as que poderão existir na Lua. Graças à arte, em lugar de vermos um só mundo, o nosso, vemo-lo multiplicar-se e, quanto mais artistas originais houver, mais mundos teremos à nossa disposição, mais diferentes uns dos outros que os que rolam no infinito e que, muitos séculos depois de extinto o fogo donde emanavam, quer esse fogo se chamasse Rembrandt ou Vermeer, nos enviam ainda os seus raios próprios.” («Em Busca do Tempo Perdido», «O Tempo Reencontrado», tradução de Pedro Tamen).
A arte sabe, com Lord Byron, que a árvore do conhecimento não é a árvore da vida. Toda a obra de arte é um monstruoso milagre (“monstro” quer dizer etimologicamente o que mostra um sinal profético; e “milagre” significa originalmente o que maravilha com o seu prodígio) que faz dessa dissidência uma multiplicação, uma proliferação, uma criação de diversos, diferentes, distantes,opostos,improváveis, inesperados, impossíveis.
A arte é dicção e contradição, pacto e confronto, criação e destruição, incandescência e cinza, fogo frio e gelo ardente. Por isso, é risco e aventura, desventura e perigo. Feita de visão, memória e acto; de sequência, série e variação; de restituição, rapto e destituição; de consciência, ciência e imaginação; de doutrina, regra e cisma; de violência, veemência e leveza – a obra de arte é uma fuga que foge para não fugir de si-mesma.
Mas é uma fuga que foge distopara se entregar àquiloque, não raro,é o outrorosto, o desconhecido, daquilo de que fugiu. Por isso, a arte não foge de Jano, o deus romano bifronte que tem poder sobre os começos e as mudanças, as entradas e as saídas, as escolhas e as decisões, cuja face dupla fita o passado e o futuro, e que, com o seu gesto gémeo, abre e fecha as portas dos mundos onde os mortos vivem e os vivos morrem.
A arte de Teresa Gonçalves Lobo tem atenção e espera. Procura a paciência e é paciente na procura. Tem música e método, modulação e minúcia. Para falarmos da sua obra, as palavras devem ter duas recusas – a do excesso e a do defeito. Nem de mais, nem de menos. Devem olhar com olhos limpos e sem a ambição da acumulação viscosa e vistosa. Devem olhar com olhos largos e sem a resignação da exiguidade oca e opaca.
Esta obra é subtil e não simples. É fluente e não fácil. É leve e não ligeira. É densa e não dúctil. É sofisticada e não solene. É serena e não suave. É sustentada e não sobrecarregada.
A sua autora desconfia instintivamente de tudo o que vem sobrepor vestes à nudez, atirar ruídos ao silêncio, trazer detritos à vida. Se a arte lhe é tempo, trabalho, tentativa e tarefa; se lhe é juramento, julgamento, justificação e às vezes jugo – é-lhe também muitas vezes jogo e júbilo.
A artista fala da sua arte como de um rio que corre sem margens. Fala dela como de um castelo sem fosso. Fala dela como de uma pedra sem peso. Fala das atracções e das filiações, das influências e das afinidades, dos parentescos e das proximidades, das convergências e sobretudo das coincidências com outros artistas como de uma telepatia de que não nos desdizemos sem nos desdizermos de nós.
Fala de Michaux, de Motherwell, de Hartung, de Louise Bourgeois, de Vieira da Silva, de Ana Hatherly, de Helena Almeida, como se falasse de retratos postos em fila numa parede interior. E fala de Bach, de Pessoa, de O’Neill, de Eugénio, de Ramos Rosa, de Herberto Helder, de Luiza Neto Jorge, ou dos caracteres chineses que traçou sem saber que era isso que estava a traçar, como se falasse das palavras de um manuscrito mental.
Desenhar é dar ao corpo um outro sistema nervoso, é entregar ao cérebro uma nova frequência eléctrica, é conceder ao rosto o rasto de uma ruga rápida. Quando desenha, Teresa Gonçalves Lobo torna-se no que é. Não parte de um porquê ou de um para quê, de uma razão ou de um motivo, de uma causa ou de um propósito. Chega a todos eles apenas no fim.
Começa com uma ausência que é preciso transformar em presença. Sabe que é necessário dar ao nãoum simque o desminta. Ela fala como se tudo fosse tão natural como a natureza, cujo sentido não se cansa de perscrutar, de procurar, de premeditar com os sentidos. Tem nisso aquela inocência de que Almada Negreiros tanto falava e tanto gostava. Mas essa inocência é, afinal, a inocência visual e astuta, dolosa e dolorosa de Alberto Caeiro.
Entrar no seu ordenado e meticuloso território do organizado atelier da Rua da Trindade é olhar as paredes cobertas, as gavetas cheias, os soalhos tapados por desenhos e mais desenhos e mais desenhos. E, no entanto, o atelier parece um pátio aberto ao vento que vai e vem.
Esse sopro de ar e de luz atravessa os desenhos que erguem o vértice do seu voo e a curva da sua aterragem. Eles mostram as dimensões que os tornam vários (a diversidade nos constrói, diz o poeta Francis Ponge). São feitos a tinta- da- china, a pastel, a carvão – e há nesse fazer rigor, ressonância e ritmo. Geram-se uns aos outros, multiplicam-se, pluralizam-se, proliferam, desafiam-se, desocultam-se.
Com uma mão que procura, persegue e experimenta, ela transforma o contingente em necessário, o arbitrário em indispensável, o condicional em imperativo. Esta obsessão e esta imersão, esta impulsão e esta indagação, esta inquirição e esta fibrilhação são o sinal de uma vocação, de uma compulsão, de uma condenação que salva. Sem elas, a arte é o contrário da arte.
Das janelas do atelier, vê-se, na fachada de um prédio em frente, escrito romanticamente debaixo das mansardas, este dizer: PENSO MAS NÃO EXISTO. Eu olhei para as letras que se juntam para formar estas palavras anti-cartesianas e achei que era a voz soerguida de Fernando Pessoa que ouvia. Talvez esta inscrição leve a mão da Teresa a desenhar os grandes vazios que dão ao nosso tempo um declive para o escuro.
A exposição « Da leveza do sonho» ( “Por que fiz eu dos sonhos/A minha única vida?”, pergunta Pessoa) mostra quinze desenhos distribuídos no tempo: um de 2010, dois de 2013, dois (os maiores) de 2015, dez de 2018. Todos são a tinta- da china preta, azul e vermelha, salvo os grandes que são a pastel seco.
Estes desenhos são o sangue seco do tempo. Têm a firmeza ácida das gravuras, a identidade tracejada das impressões digitais, a velocidade soletrada dos morses visuais, o segredo surdo dos códigos, a mudança de escala da vida.
São desenhos que dizem o elogio da sombra e a alegria da luz. São feitos com a arte e a técnica ( teknéé arte e técnica) do arqueiro zen, que estica o arco e aponta a flecha ao alvo, sabendo que o alvo é ele – e é a si mesmo que aponta («Zen e a Arte do Tiro com Arco», Eugen Herrigel).
No Purgatório, da “Divina Comédia”, Dante parece falar destes desenhos, quando diz: “ E semelhante, pois, à chama que / Segue o fogo, também a forma nova/ Segue o espírito por onde ele se muda.// Porque daqui lhe vem sua aparência/ Sombra se chama; e assim organiza/ Cada sentido e até a própria vista”. ( Canto XXV, tradução de Sophia de Mello Breyner Andresen)
Os desenhos de Teresa Gonçalves Lobo pensam sem a mediação das ideias, assim se respira debaixo de água enquanto os olhos abrem, suspensos, o seu espanto rápido e azul. São uma meditação inspirada – um ioga visual com o seu pranayama. É como se fossem parte de um todo que já existia antes e que continuará a existir depois.
Na sua astúcia construtiva, na sua eloquência técnica, na sua materialidade mineral, na sua agilidade alada e na sua sabedoria visual, estes desenhos são como aforismos ópticos (creio que Espinosa gostaria de os ver). Dizem que estamos a olhar o mundo que nos olha. E lembram-nos que a arte é uma ética: a de sabermos estar à altura do ponto onde se cruzam esses dois olhares.
Em Degas Danse Dessin (1938), Paul Valéry lembra que Ingres disse a Degas: “ Faça linhas…Muitas linhas, seja a partir da recordação, seja a partir da natureza”. E Degas costumava citar Ingres: “ O desenho não está fora do traço, está dentro”.
Os desenhos de Teresa Gonçalves Lobo estão sempre no interior do seu exterior, no ládentrodo seu cá fora. E trazem com eles a memória daquilo que, um dia, Edgar Degas, grande desenhador de movimentos e de marcações, de instabilidades e de instantes, de mimeses e de mímicas, de geometrias e de gestos, disse a Paul Valéry:
“O desenho não é a forma, é a maneira de ver a forma”.
Que assim seja o que assim é.
Setembro de 2018
José Manuel dos Santos